Grupo de arqueologia dos Cursos de Letras U.L. Lubango

domingo, 1 de março de 2009

Contribuição para a compreensão da metalurgia do ferro em Angola

O fabrico de instrumentos e armas em ferro é relativamente antigo no continente africano a sul do Saara. Consensualmente, está do ponto de vista tecnológico, associado a uma agricultura desenvolvida e ou às sociedades predominatemente pastoras/guerreiras, bem como à expansão Bantu.
(Difusão da metalurgia segundo Posnansky in B. Fagan África Austral 1968)


Na história de Angola faltam os dados da arqueologia na maior parte do território para a atestar a ancestralidade do uso regular da metalurgia anteriores à formação dos reinos do Congo e Angola, sendo certo que as comunidades bantus que os formam, já eram especialistas da tecnologia do ferro à chegada dos europeus em 1482.
Apesar disso, a antiguidade da metalurgia no noroeste angolano veio a confirmar-se com as escavações de zonas adjacentes dos túmulos em pedra vã de falsa cúpula região de kapanda ( Pungo A Ndongo), que revelaram a presença de elementos identificadores da cultura do ferro comprovadamente mais antigos do que se esperava: c. 139 d.C.(Gutierrez, 1999).




Outra perspectiva difusionista sobre o percurso de difusão do ferro na África Austral que corresponde mais aos critérios de difusão linguística



Já para as estruturas mais complexas da cultura do ferro, nos planaltos centrais de Angola, como sejam aquelas que se aproximam das existentes no Zimbabwe e no Transvaal, tidas como referência para a Idade do Ferro da África Austral, a datação obtida pelo mesmo método (Carbono 14) remete para o século VIII da nossa era, as amostras colhidas no amuralhado do Feti (Huambo). O que vem a conferir uma antiguidade também notável.(idem).

Pena é que não haja mais informação proveniente de escavações arqueológicas de lugares, como o Oci, que tem cerca de 9 km de perímetro (tinha, pois o lugar foi inundado pela barragem da Matala), os amuralhados da Huíla e Jau, Abrigo 1 da Ganda, Hondio, as sepulturas de pedra vã da região da Quibala, entre outras. Os estudos realizados não deram como resultado qualquer datação por métodos científicos que permitam consolidar a ancestralidade da chegada da metalurgia do ferro a Angola.

As que temos, contudo, vieram a desiludir os que defendem a tese difusionista da metalurgia do ferro na zona ocidental da África Austral, ( J. Ki-Zerbo e muitos dos anglófonos) a partir dos povos nilóticos ou mesmo para os defensores da sua difusão, no mesmo sentido, na qual a introdução do ferro se deu pelos povos instalados na Zâmbia ou no Zimbabwe (por exemplo, Brian Fagan).

A metalurgia do ferro e do cobre em Angola, revelaram-se, de acordo com a tradição local e com a documentação deixada pelos clássicos da historiografia colonial, associadas à extensão da posse/usufruto de territórios e da guerra . Presumivelmente por essa razão, surge apropriada por um estrato político-social que configurou, ao longo do tempo, confederações de chefaturas e em reinos posteriores.
É exemplo disso, no Reino do Congo, a tradição da escolha do mani sobre um ferreiro, ou a quem se lhe atribuía os poderes dos mestres forjadoras,(G. Balandier) designado por ntotila, tal como em muitas das comunidades patriarcais que se espalharam pelo planalto central e na zona sudoeste. Naquelas comunidades, o mestre forjador era sempre aquele que conhecia os poderes da transformação da matéria e da continuidade da relação entre os espíritos dos ancestrais e as famílias que formam a comunidade viva. A um tempo respeitado e a outro temido, portanto.

Célebre imagem da corte do Congo onde se regista o trabalho da forja com um fole de uma única peça em madeira com dois insufladores, com o mestre a aperfeiçoar um machado de dignatário, segundo João A. Cavazzi de Montecúccolo
Nas comunidades que se estabeleceram nos planaltos abaixo do alto Catumbela, do Alto Cubal a até à terras dos nhyaneka, os ferreiros eram muitas das vezes considerados curandeiros e também feiticeiros, pelo que as suas oficinas eram sempre recatadas e fora das aldeias, em lugares como grutas ou abrigos sob rocha, cuja devassa corria os riscos de sofrer consequências nefastas pelos prevaricadores. Tal como no caso dos chefes na sua cabana (o corpo), o forjador seria inumado no local da oficina de fundição ( como terá sido o caso do Abrigo 1 da Ganda).

Planalto do rio Cubal da Hanha (foto do autor)


Culturalmente, a forja de fundição era sempre considerado um lugar sagrado e por isso um lugar de culto, particularmente entre as sociedades mais sedentárias e menos inflenciadas pelo modo de vida europeu. Nas comunidades que possuíam lugares definitivos para a instalação de forjas (em toda Angola, à excepção dos Ambós e Nhyaneca Humbis, Cuvales) quando um elemento adoecia, era frequante levá-lo ao lugar da fundição e competia ao forjador realizar a cerimónia com recurso ao sacrifício de algum animal (geralmente uma galinha), nomeadamente, mais do que obter a cura, saber quem tinha provocado a doença.
Na fotografia dois manipuladores dos foles duplos em madeira e couro . Os insufladores estão presos a duas varas que são levantadas e baixadas alternadamente, fazendo entrar na fornalha o ar, capaz de fazer atingir , na fornalha, cerca de 900 graus centígrados. in http://www.blogger.com/post-edit.g?blogID=5750484022669949554&postID=3297740313367549872

Do ponto de vista sociológico, nas sociedades mais complexas e organizadas em chefaturas ou reinos, a mina, os lugares de depósito do minério e zonas de “garimpo” eram propriedadde do soba ou do rei. Quando o mestre forjador não era o próprio chefe, a oficina de fundição era administrada pelo mestre, mas participando nos trabalhos os elementos da comunidade, em particular do clã do forjador. O trabalho de colheita do minério e a sua preparação era destinado às mulheres, mesmo entre os povos pastores.
Não é atribuida qualquer qualidade ao minério, enquanto rocha, para se transformar em objecto utilizável. É o mestre forjador que tem essa qualidade e fá-lo, não só na determinação de qual é a pedra adequada, como também na construção do próprio forno e os seus periféricos ( foles, algaravizes, calha de fundição, bigorna, etc). Fotografia representando a fase final da fundição com a abertura da "boca" do forno e o início da obtenção do lingote de ferro na suia fase primária. Posteriormente será retemperado e purificado com várias operações de forja e batimento em bigorna. in https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgObBX4e5fZqtrw6RDpAt7_coy1B1tWsDDuX4GID21rHaDij3qp3jhSJC_blNZDSRyZLoJuwyYfbxlS3QvbbsAD6C2GI7Ik6KynpCjqR0a6Sa7PhOwtcd8pyEwkDdmFqtq6gGiq7deo6YsJ/s320/iron_smelting7.jpg
É ele que preside ao ritual de passagem que constitui a fundição, em que o ar expelido pelos foles (sempre manipulados por elementos do sexo masculino, que realizaram os ritos de passagem para a idade adulta) representa a masculinidade, o sémen da vida e a fornalha, o útero da mulher e o ferro incandescente que escorre da boca da fornalha (equivalente cultural da vagina) a nova vida e depois, o artefacto.


Uma fornalha antropomórfica, segundo a tradição Tchokwe ( embora também seja esta a tradição dos povos da Zâmbia e entre os Zulus na RAS) reparem na representação feminina, na posição de parto. Luachimo. Lunda Sul ( Boletim Cultural do Museu do Dundo, 1960, Bacellar Bebiano)


Fotografia de um pedaço de escória de ferro que serviria depois para refundição descoberto na Quitavava-Alto Catumbela por Carlos Pinhão.








Bibliografia:

Ana e Jorge Sá Pinto "Civilizações do Ferro em África" in nº 1 da revista Clepsidra Out/Nov/Dez. Lubango1973
Brian Fagam " A África Austral" col. Historia Mundi Verbo, Lisboa 1970.
Manuel Gutierrez Archéologie et Anthropologie de la Nécropole de Kapanda L'Harmatatan, Paris 1999.