Grupo de arqueologia dos Cursos de Letras U.L. Lubango

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O sal: tecnologia e o seu papel nas relações humanas.

(A Baía de Benguela. Aqui se instalaram desde cedo produtores e comerciantes de sal, sempre controlados pela superestrutura dominante. fotografia de Lelo Sá Pinto)

A produção e a comercialização do sal em Angola, condicionou durante séculos as relações entre os povos que se fixaram no território angolano.
O sal como toda a gente sabe, é fundamental para a sobrevivência do homem e nas terras quentes e húmidas, o organismo está sujeito a enormes perdas de sal através da transpiração, o que leva a ter de compensar a dieta comum com alimentos ricos em sal e com a adição do mesmo na culinária (para além do jindungo). Os angolanos ( como aliás outros africanos) utilizam o sal também como compensador do excesso de ácido no estômago, como tratamento de doenças do trato digestivo e ainda como cicatrizante misturado com outras substâncias.
Os povos pastores como os Kwanyamas e os Kuvales utilizam ainda o sal como suplemento da alimentação do gado, recorrendo às pastagens conde abundam as ervas salgadas, ou mais raro, fazendo o gado lamber bolas de sal.
Muito antes da chegada dos portugueses à costa de Angola, são conhecidas algumas rotas do sal que ligavam aldeias da costa, como a ilha de Luanda, sede dos axiluanda ou as aldeias da Kisama , Sumbe e Benguela em direcção ao interior, para as sedes dos grandes estados centrais dos Luba-Lunda, Katanga e daí aos estados da Actual Zâmbia. Este circuito era multiplicado por numerosas redes de comerciantes estabelecidos nos postos de revenda controlados pelos sobas e seus vassalos.
O poder de muitos dos sobas era atribuído pela posse, da produção ou do controlo da rota ou do posto de revenda. Era frequente, o pagamento de tributos de reconhecimento por parte de sobas tributários com sal. Essa importância vem assinalada por exemplo, pelos nossos bem conhecidos Brito Capelo e Roberto Ivens na sua obra “De Benguela às terras de Iaca” publicada em 1881, quando visitaram o Kazembe.
(Uma comitiva no final do séc. XIX. As comitivas chegavam a ter 500 carregadores. Chegando a Benguela, regressavam com sal, pólvora, peças de pano e artefactos vários)


Isabel Henriques cita também o facto (que é curioso) entre as populações Pende (NE de Angola) um elemento da família, o terceiro filho, ficava sempre destinado a garantir o abastecimento de sal à família sendo designado por filho do sal. A autora não diz como é que assim se garantia o bem precioso, mas deduzo que fosse trocado por sal. ( não forçosamente como escravo para os europeus) ( Isabel C. Henriques, “Sal, comércio e poder em Angola no séc. XIX”, actas do Colóquio Construção e Ensino da História de África, pp 355-367) ou então seria este elemento da família a produzir o referido sal.
O sal, ainda no tempo colonial até à II Guerra de Libertação, era produzido/obtido através de diversos processos com mais ou menos intervenção de tecnologia.
Na costa, pelo menos Benguela a nova ( verdadeira Benguela) e na região do Cacuaco, à chegada dos portugueses o sal era obtido por evaporação sem intervenção de qualquer tecnologia, sendo recolhido o depósito nos pântanos de água salobra. Também em Benguela no lugar conhecido entre o Coringe e a escarpa das Bimbas recolhia-se a terra com salitre e deixava-se de molho em cabaças. Decantava-se a água que se deixava evaporar.
Outro processo consistia em fazer uma infusão de ervas que crescem em vários locais da savana seca ou semi desértica, deixando-se evaporar o líquido. Ainda um outro citado por Isabel Henriques, era queimar o capim salgado e as suas cinzas eram depois misturadas com água, indo tudo para uma panela, onde o composto era fervido até se esgotar o líquido, retirando as impurezas que subiam à superfície com a ebulição.
Este processo vi também ser usado ao Sul da Baía Farta e também na Guiné Bissau, mas com a própria água salgada, sem o capim.
Outro processo junto à costa entre os Axiluanda, era semelhante ao usado nas salinas construídas pelos portugueses, mas de pequeníssima dimensão. À agua era recolhida com cabaças e despejada em pequenos tinas escavadas tornados impermeáveis com gordura.
Mas seguramente, a fonte mais conhecida para além do sal fornecido pelas salinas portuguesas, da costa angolana, era o sal gema retirado da região da Kissama. Essa região terá sido palco das mais antigas, prolongadas e violentas guerras que Angola conheceu até à chamada pacificação, porventura pela posse do Sal. O sal aqui era extraído do solo e talhado em diferentes formatos. Segundo um autor brasileiro que visitou Angola em 1792, Elias Corrêa, o sal da Kissama era propriedade do rei local e tinha qualidades curativas famosas. Entrava depois no circuito criado pelos portugueses. Segundo o mesmo autor, este sal circulava depois para outros territórios coloniais, incluindo o Brasil.
Sobre esta região, mas sobretudo pela sua fama como produtora de sal, vem referido nas tradições orais de alguns povos do Nordeste de Angola como por exemplo os Imbangala. De acordo com Henrique de Carvalho, o fundador do reino o soba Kinguri deslocou o seu clã do território do Kassai para dirigir-se ao ocidente em direcção à bacia do Quanza para se instalar no país do sal, assim que as minas foram conhecidas naqueles territórios. Não conseguindo conquistar fixou-se nas margens do Kwango na região de Kassange controlando assim o entreposto da rota do sal para o nordeste angolano. (H. de Carvalho, Etnografia e Hitória Tradicional dos Povos da Lunda, 1890).
Apesar da presença portuguesa até meados do século XIX não se sentir para além duma linha que não ía mais do que três ou quatro centenas de quilómetros para o interior, o comércio de sal, logo que o comércio de escravos começou a declinar, foi talvez o último meio de produção que resistia nas mãos do angolanos autóctones depois das peças em cobre, do latão e do ferro locais, terem sido engolidos pela globalização colonialista.

Bibliografia de referência: Isabel C. Henriques, “Sal, comércio e poder em Angola no séc. XIX”, actas do Colóquio Construção e Ensino da História de África, pp 355-367.
Henrique de Carvalho- “Etnografia e História Tradicional dos povos da Lunda”, Imprensa Nacional, Lisboa, 1890
Capelo e Ivens “De Benguela às terras de Iaca” vol.I, Imprensa Nacional, 1881.